LADRAM UNS CÃES À DISTÂNCIA
Ladram uns cães à distância
Cai uma tarde qualquer,
Do campo e eu deixo de ver
Um sonho meio sonhado,
Em que o campo transpareceu,
Está em mim, está ao meu lado,
Ora me lembra ou me esquece,
E assim neste ócio profundo
Sem males vistos ou bens,
Sinto que todo este mundo
É um largo onde ladram cães.
SOSSEGA CORAÇÃO! NÃO TE DESESPERES
Sossega coração! Não desesperes!
Talvez um dia, para além dos dias,
Encontres o que queres porque o queres,
Então, livre de falsas nostalgias,
Atingirás a perfeição de seres.
Mas pobre sonho o que só quer não tê-lo!
pobre esperança a de existir somente!
Como quem passa a mão pelo cabelo
E em si mesmo se sente diferente,
Como faz mal ao sonho o concebê-lo!
O sossego não quer razão nem causa,
A grande, universal, solene pausa
Antes que tudo em tudo se transforme.
ENCOSTEI-ME
Álvaro de Campos
Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,
E o meu destino apareceu-me na alma como um
precipício
A minha vida passada misturou-se com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez,
Ah, balouçado, na sensação das ondas,
Ah embalado,
Na ideia tão confortável de hoje ainda não ser
amanhã,
De pelo menos neste confortável momento não ter
responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali
deixasse,
Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco
sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na Quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento,
Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros
análogos
Aqueles momentos em que não tive importância
nenhuma,
Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência
sem inteligência para compreender,
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.